A aduana fica a 4.000m de altitude, de frente para o salar de San Francisco e com uma vista magnífica para a o vulcão Incahuasi. Já estava quase anoitecendo e começava uma chuva bem fina, o que esquentou um pouco.
Fui muito bem recebido por gente extremamente humilde. Ficamos um pouco de conversa e daí cada um se sentou em sua escrevaninha para o trabalho de me admitir em seu país. O processo é burocrático mas não foi demorado e a conversa foi boa. Existe um curioso protocolo: Primeiro o sujeito “a” recebe meus documentos, depois fui à mesa do Sujeito “b” para assinar um livro enorme, parecido com os livros antigos de cartório no Brasil, o sujeito “c” me devolve o papelório com formalidade. Fiquei observando o grande forno de metal fundido, movido à lenha, que serve para aquecer o local. Me perguntaram se eu iria ficar na pousada para alpinistas, e mais uma vez eu recusei. Curiosa esta minha mania de me prender ao pré-estabelecido e não enxergar uma possibilidade mais segura. Teria sido muito mais interessante, confortável e seguro ter dormido naquela pousada quente e seca a 4.000m.
Saindo da aduana ficam Las Peladas (uma muralha de montanhas nevadas, não são meninas...), totalmente escondidas nas nuvens e o começo da Quebrada de Chaschuil, o vale que me levaria a Fiambalá. A pouca luz do dia (ja eram quase 20:00) e as nuvens baixas deram um tom marrom escuro às plantas que normalmente são douradas sob o sol e deixou as rochas negras ainda mais negras: a cena era fantasmagórica.
A cada minuto a altitude diminuía, a temperatura caía e a luz desaparecia. As únicas coisas que aumentavam eram a chuva e meu cansaço. Segui descendo a cerca de 140 km/h. Apesar de tudo, eu estava tranquilo e com muito combustível a bordo.
A noite ficou realmente escura. Depois de uns 85 km da aduana, cerca de 3.400m de altitude, percebi no meio da escuridão um edifício grande que parecia um oásis naquele frio e chuva. Tratava-se (fiquei sabendo dias depois) do Hotel Cortaderas, um quatro estrelas encrustado naquele vale. Decidi entrar. A estradinha de acesso era muito ruim e estava chovendo mesmo. Fiquei preocupado porque não via nenhuma luz acesa em nenhuma janela. Percebi que no final do edifício, onde talvez fosse o concierge (imaginei meninas bonitas, sorridentes, solícitas, impecavelmente trajadas e me recebendo em francês) havia algumas salas iluminadas. Estacionei onde pude, ao lado de onde estava iluminado e entrei.
Fui muito bem recebido por dois adolescentes de camiseta, shorts e descalços. Os simpáticos eram da equipe de manutenção que ficou ali para tomar conta do hotel enquanto estevess fechado. Imediatamente me lembrei do filme “O Iluminado”! Correu um frio na espinha: aqueles garotos iriam me colocar para dormir, depois iriam me cortar em pedacinhos, vender meus órgãos e a Rocinante viraria motor de gerador, com suas rodas equipando uma carroça... Realmente me deu medo. Nem perguntei se eu poderia dormir ali. Acho que alguém ofereceu uma cama, mas o pavor era tamanho... Não aceitei o café apetitosamente quente e arrumei uma desculpa para desaparecer dali!!! Por isto que eu acredito que quanto mais televisão eu assisto, pior eu fico!!!
A estrada segue sentido sul por um padrão repetitivo, trechos de reta com pouca inclinação, e a cada 10 ou 15 km uma serrinha mais íngreme. Apesar da escuridão total eu conseguia viajar a 140 ou até 160 km/h. Andei muito tempo entre 3.400m e 3.200m de altitude. Mais uma vez eu celebrava cada 100m de queda na altitude e cada grau que a temperatura subia. Quando marcou 15 °C , eu abri o capacete, os zíperes da jaqueta e comemorei o “calor”. Com o “calor” a chuva fina sumiu e a estrada ficou realmente gostosa.
Cheguei ao centro dde Fiambalá (que tem quatro ruas sul-norte e menos de uma dúzia de travessas) eram 21:45. Apesar do dia intenso eu não estava cansado. Parei na praça (a principal e a única...) e toda a polícia veio me ver! Muito simpáticos, as mesmas perguntas e o espanto em saber que estou sozinho. Indicaram-me onde ficava a Hosteria Municipal e logo eu estava no quarto com um excelente banho e ar condicionado.
O simples e pequeno hotel estava fechado para uma ceia de ano novo, o dono do restaurante me acomodou em uma mesa em um canto isolado. Não quis participar do regabofe e fui brindado com um bifinho, salada e cerveja. Era mais do que eu precisava naquela noite de ano novo. Logo estava de volta para o meu quarto com ar condicionado. Ar Condicionado? Sim!!! Para quem está a dez horas aclimatado a não mais do que dez graus, 23°C são um forno!!!
Foram 7:44 de deslocamento para percorrer 543km (70 km/h de média, rápido memso). Contando minhas paradas para fotos, caminhadas atrás de plantas e insetos, bate papo com os raros seres humanos, paradas na aduana, para água, para descansar do rípio infernal e ficar feito bobo hipnotizado pelos vulcões, foram 12:40 de viagem.
Quando me deitei senti saudade da Puna, do pedrisco solto, do vento, das dificuldades. Desmaiei na cama ultra confortável e não ouvi os fogos de artifício comemorando o ano novo...